segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Crônica do exílio

Minha terra tem palmeira, coqueiro, mangueira, figueira, amendoeira, castanheira, pinheiro, tem árvore a dar com um pau, em que pousam e cantam sabiá, bem-te-vi, canário, coleiro, colibri, pardal e outros passarinhos, passarões, gaviões, que fazem ninhos e procriam na primavera, no verão, em tudo quanto é estação, enquanto não vem um ser que se diz humano e sai cortando, queimando, arrasando, em nome do progresso, do desenvolvimento e não sei mais o quê...
Minha terra tem gente com nome de árvore: Pereira, Oliveira, Moreira, Figueira e mais alguns que não lembro agora. Tem gente que é de Souza, de Moura, de Almeida, de Alcântara, da Cunha, Disso, Daquilo, da Silva, dos Anjos, de Jesus, dos Santos e outros tantos: Carneiro, Coelho, Pinto, Leão e outros bichos... e ainda outros mais estranhos e complicados: Barrichello, Ciccarelli, Mazzucchelli, González, Morales, Lafayette, Kubistchek, Vandekoken, Drummond, Bittencourt, Thibault, Yamazaki... Gente de tudo quanto é raça, cor e credo (credo!), de quanto é parte do mundo, gente bonita, gente feia, gente boa e, infelizmente, gente ruim também...
Minha terra tem muita terra sem gente e muita gente sem terra, sem teto, sem roupa, sem ter o que comer, sem saber como vai ser o dia seguinte. Sem esperança, sem sonhos... Sem vida, talvez... Tem gente sem rumo, sem remo, sem lenço, sem documento, sem ter onde cair morta, mas com isso não se importa, nem se importa com mais nada. Tem também muita gente sem caráter, sem vergonha, sem coração, sem educação, cem por cento sem juízo, sem escrúpulos, se aperfeiçoando na perversidade e se perdendo na própria insanidade...
Minha terra tem sabiás engaiolados, tem passarinhos morrendo sufocados nas matas queimadas, peixes morrendo asfixiados nos rios e nos mares poluídos pelo descaso e pelo descuido da população ribeirinha, urbana e insana das cidades grandes, pequenas e interioranas. Minha terra tem muita propaganda enganosa na televisão, no rádio, na imprensa escrita, na tal de Internet, mentiras e falsas promessas em tempos de eleição, eleitores enganados, traídos, desiludidos, desesperançados, à própria sorte esquecidos... crianças e idosos abandonados, pais desempregados, homens efeminados e, soltos, muitos bandidos safados e políticos desavergonhados vivendo às custas de trabalhadores ludibriados.
Minha terra tem frentes e bóias frias, panelas vazias, dias quentes e violentos, noites agitadas, vazias de sonhos, cheias de sobressaltos e horríveis pesadelos... Tem rebeliões nos presídios (que deveriam existir em maior número e conter mais ocupantes), casas de custódia e nas funabens e febens da vida... Tem chacinas, seqüestros, assaltos a mão armada, violência doméstica, guerras de bandidos contra bandidos, bandidos contra polícia, bala perdida e muita gente perdendo a vida nos cruzamentos, nos viadutos, nas pontes, na linha vermelha, na amarela, nas praças, nas esquinas, nos hospitais, nas escolas, nas faculdades, sabe-se mais aonde...
Minha terra tem adolescentes e jovens insolentes tornando-se delinqüentes nos becos, nos guetos, nos morros, nos calçadões, nas praias, na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê... Tem gente na minha terra que está vivendo só para si e gente que, por causa disso, está morrendo.
Mas, felizmente, tem também gente que está nadando contra a maré da desesperança, da idolatria, da feitiçaria, da cegueira espiritual e da perversidade que assola as cidades e a vida das pessoas... Tem gente lutando - com toda a força e com todo o coração - na guerra contra a fome, contra a ignorância, contra a violência, contra a escravidão, contra o poder maligno das trevas, contra tudo que afasta as pessoas umas das outras e de Deus. Tem gente que está, obstinadamente, buscando ver, com os olhos da fé, a face do Criador da vida na terra, na nossa terra, e com isso conseguindo olhar com amor para o seu semelhante... E é por isso também que essa gente assim vai vivendo sem medo da morte, sem medo da sorte, do perigo, do inimigo. Sem medo de ser feliz...!
Decottignies
maio, 2005.

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