Crônica de Contardo Caligáris, Ilustrada 28 de junho de 2012, Folha de São Paulo. Vale conferir...
NA FRENTE da câmara fotográfica, ninguém
precisa nos dizer "Sorria!"; espontaneamente, simulamos grandes
alegrias, sorrindo de boca aberta. Em regra, hoje, os retratos são propaganda
de pasta de dentes – se você não acredita, passeie pelo Facebook, onde muitos
compartilham seus álbuns, rivalizando para ver quem parece melhor aproveitar
a vida.
O hábito de sorrir
nos retratos é muito recente.
Angus Trumble, autor de "A Brief History of the Smile" (uma breve
história do sorriso, Basic Books), assinala que esse costume não poderia ter
se formado antes que os dentistas tomassem nossos dentes apresentáveis.
Além disso, os retratos pintados pediam
poses longas e repetidas, para as quais era mais fácil adotar uma expressão
"natural". O mesmo vale para os daguerreótipos e as primeiras fotos:
os tempos de exposição eram longos demais. Já pensou manter um sorriso por
minutos?
Outra explicação é que o retraio, até a
terceira década do século 20, era uma ocasião rara e, por isso, um pouco
solene.
Mas resta que nossos antepassados recentes,
na hora de serem imortalizados, queriam deixar à posteridade uma imagem de
seriedade e compostura; enquanto nós, na mesma hora, sentimos a necessidade de
sorrir – e nada do sorriso enigmático do Buda ou de Mona Lisa: sorrimos
escancaradamente.
Certo, o hábito de sorrir na foto se
estabeleceu quando as câmaras fotográficas portáteis banalizaram o retraio. Mas
é duvidoso que nossos sorrisos tenham sido inventados para essas câmaras.
É mais provável que as câmaras tenham surgido para satisfazer a dupla
necessidade de registrar (e mostrar aos outros) nossa suposta
"felicidade" em duas circunstâncias que eram novas ou quase: a vida
da família nuclear e o tempo de férias.
De fato, o álbum de fotos das crianças e o
das férias são os grandes repertórios do sorriso. No primeiro, ao risco de
parecerem idiotas de tanto sorrir, as crianças devem mostrar a nós e ao mundo
que elas preenchem sua missão: a de realizar (ou parecer realizar) nossos sonhos
frustrados de felicidade. Nas fotos das férias, trata-se de provar que nós
também (além das crianças) sabemos ser "felizes".
Em suma, estampado na cara das crianças ou
na nossa, o sorriso é, hoje, o grande sinal exterior da capacidade de
aproveitar a vida. É ele que deveria nos valer a admiração (e a inveja) dos
outros.
De uma longa época em que nossa maneira e
talvez nossa capacidade de enfrentar a vida eram resumidas por uma espécie de
seriedade intensa, passamos a uma época em que saber viver coincidiria com
saber sorrir e rir. Nessa passagem, não há só uma mudança de expressão: o
passado parece valorizar uma atenção focada e reflexiva, enquanto nós
parecemos valorizar a diversão. Ou seja, no passado, saber viver era focar na
vida; hoje, saber viver é se distrair dela.
Ao longo do século 19, antes que o sorriso
deturpasse os retratos, a "felicidade" e a alegria excessivas eram,
aliás, sinais de que o retratado estava dilapidando seu tempo, incapaz de
encarar a complexidade e afinitude da vida.
Alguém dirá que tudo isso seria uma
nostalgia sem relevância, se, valorizando o sorriso e o riso, conseguíssemos
tomar a dita felicidade prioritária em nossas vidas. Se o bom humor da
diversão afastasse as dores do dia a dia, quem se queixaria disso?
Pois é, acabo de ler uma pesquisa de íris
Mauss e outros, "Can Seeking Happiness Make People Happy? Paradoxical
Effects of Valuing Happiness", em Emotion on-line, em abril de 2011 (http://migre. me/9CT8e).
Em tese, a valorização ajuda a alcançar o
que é valorizado – por exemplo, se valorizo as boas notas, estudo mais etc. Mas
eis que duas experiências complementares mostram que, no caso da felicidade
(mesmo que ninguém saiba o que ela é exatamente – ou talvez por isso), acontece
o contrário: valorizar a felicidade produz insatisfação e mesmo depressão. De
que se trata? Decepção? Sentimento de inadequação?
Um pouco disso tudo e, mais radicalmente,
trata-se da sensação de que a gente não tem competência para viver – apenas
para se divertir ou, pior ainda, para fazer de conta. Como chegamos a isso?
Pouco tempo
atrás, na minha frente, uma mãe conversava pelo telefone com o filho (que a
preocupa um pouco pelo excesso de atividade e pela dispersão). O menino estava
passando um dia agitado, brincando com amigos; a mãe quis saber se estava
tudo bem e perguntou: "Filho, está se divertindo bem?".