sexta-feira, 29 de junho de 2012

Sorria!

Crônica de Contardo Caligáris, Ilustrada 28 de junho de 2012, Folha de São Paulo. Vale conferir...


NA FRENTE da câmara fotográfi­ca, ninguém precisa nos dizer "Sor­ria!"; espontaneamente, simulamos grandes alegrias, sorrindo de boca aberta. Em regra, hoje, os retratos são propaganda de pasta de dentes – se você não acredita, passeie pe­lo Facebook, onde muitos compar­tilham seus álbuns, rivalizando pa­ra ver quem parece melhor aprovei­tar a vida.
O hábito de sorrir nos retratos é muito recente. Angus Trumble, au­tor de "A Brief History of the Smile" (uma breve história do sorriso, Ba­sic Books), assinala que esse costu­me não poderia ter se formado an­tes que os dentistas tomassem nos­sos dentes apresentáveis.
Além disso, os retratos pintados pediam poses longas e repetidas, para as quais era mais fácil adotar uma expressão "natural". O mesmo vale para os daguerreótipos e as pri­meiras fotos: os tempos de exposi­ção eram longos demais. Já pensou manter um sorriso por minutos?
Outra explicação é que o retraio, até a terceira década do século 20, era uma ocasião rara e, por isso, um pouco solene.
Mas resta que nossos antepassa­dos recentes, na hora de serem imor­talizados, queriam deixar à poste­ridade uma imagem de seriedade e compostura; enquanto nós, na mes­ma hora, sentimos a necessidade de sorrir – e nada do sorriso enigmáti­co do Buda ou de Mona Lisa: sorri­mos escancaradamente.
Certo, o hábito de sorrir na foto se estabeleceu quando as câmaras fotográficas portáteis banalizaram o retraio. Mas é duvidoso que nossos sorrisos tenham sido inventados para essas câmaras. É mais prová­vel que as câmaras tenham surgido para satisfazer a dupla necessida­de de registrar (e mostrar aos ou­tros) nossa suposta "felicidade" em duas circunstâncias que eram no­vas ou quase: a vida da família nu­clear e o tempo de férias.
De fato, o álbum de fotos das crianças e o das férias são os gran­des repertórios do sorriso. No pri­meiro, ao risco de parecerem idio­tas de tanto sorrir, as crianças de­vem mostrar a nós e ao mundo que elas preenchem sua missão: a de re­alizar (ou parecer realizar) nossos sonhos frustrados de felicidade. Nas fotos das férias, trata-se de provar que nós também (além das crian­ças) sabemos ser "felizes".
Em suma, estampado na cara das crianças ou na nossa, o sorriso é, hoje, o grande sinal exterior da capacidade de aproveitar a vida. É ele que deveria nos valer a admiração (e a inveja) dos outros.
De uma longa época em que nos­sa maneira e talvez nossa capaci­dade de enfrentar a vida eram resu­midas por uma espécie de serieda­de intensa, passamos a uma época em que saber viver coincidiria com saber sorrir e rir. Nessa passagem, não há só uma mudança de expres­são: o passado parece valorizar uma atenção focada e reflexiva, enquan­to nós parecemos valorizar a diver­são. Ou seja, no passado, saber vi­ver era focar na vida; hoje, saber vi­ver é se distrair dela.
Ao longo do século 19, antes que o sorriso deturpasse os retratos, a "felicidade" e a alegria excessivas eram, aliás, sinais de que o retratado estava dilapidando seu tempo, incapaz de encarar a complexida­de e afinitude da vida.
Alguém dirá que tudo isso seria uma nostalgia sem relevância, se, valorizando o sorriso e o riso, conseguíssemos tomar a dita felicida­de prioritária em nossas vidas. Se o bom humor da diversão afastasse as dores do dia a dia, quem se quei­xaria disso?
Pois é, acabo de ler uma pesqui­sa de íris Mauss e outros, "Can Seeking Happiness Make People Happy? Paradoxical Effects of Valuing Happiness", em Emotion on-line, em abril de 2011 (http://migre. me/9CT8e).
Em tese, a valorização ajuda a al­cançar o que é valorizado – por exemplo, se valorizo as boas notas, estudo mais etc. Mas eis que duas ex­periências complementares mostram que, no caso da felicidade (mesmo que ninguém saiba o que ela é exatamente – ou talvez por isso), acon­tece o contrário: valorizar a felicida­de produz insatisfação e mesmo de­pressão. De que se trata? Decepção? Sentimento de inadequação?
Um pouco disso tudo e, mais ra­dicalmente, trata-se da sensação de que a gente não tem competência para viver – apenas para se divertir ou, pior ainda, para fazer de conta. Como chegamos a isso?
Pouco tempo atrás, na minha frente, uma mãe conversava pelo te­lefone com o filho (que a preocupa um pouco pelo excesso de atividade e pela dispersão). O menino estava passando um dia agitado, brin­cando com amigos; a mãe quis sa­ber se estava tudo bem e perguntou: "Filho, está se divertindo bem?".

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