sexta-feira, 29 de março de 2024

Por que converso com o vento


Não sei conversar com as pessoas. Isso, pelo menos, é o que me acostumei a ouvir de minha falecida mãe.
- Filho, você não sabe conversar.
E ela estava certa. Eu tenho a horrível mania de nem sempre concordar com tudo que as pessoas dizem, e quando uma dessas pessoas era ela o caldo geralmente entornava, porque ela sempre tinha razão, não importava o que dissesse. Se, por exemplo, ela dissesse que o planeta Terra tem a forma de um caixote e não de uma esfera, era bobagem contra-argumentar.
O problema é que eu sempre me esquecia das verdades inquestionáveis que ela dizia. Por exemplo:
- Varrer a casa depois das seis da tarde faz mal, dá azar, atrai doença. Aprendi com minha avó, é a mais pura verdade.
Isso e todas as leis físicas e metafísicas que regem a sorte, o azar, a saúde, a doença, a morte, a vida e tudo mais... Por isso é que não se deve dormir com os pés virados para a porta, passar debaixo de escada, manusear tesoura em dia de chuva ou atravessar o caminho de um gato preto. Espelho quebrado, além do risco de provocar acidentes, ainda traz sete anos de azar.
Enfim, levou muito tempo mas eu aprendi a não mais duvidar de tudo o que ela dizia. Aprendi também que conversar não é o que eu pensava. Eu costumava achar que numa conversa cada pessoa tem sua vez de falar. Ledo e Ivo engano. Nada a ver. E até entender isso, tive muito que me aborrecer com meus interlocutores, que teimavam em me interromper no meio da minha fala e não me davam o direito de fazer o mesmo. Felizmente, aprendi.
 
Às vezes me pego pensando no tempo que perdi tentando expor minhas opiniões e ideias inúteis. E só de pensar nisso, sinto uma insuportável dor na alma por constatar que não posso voltar e recolher minhas palavras que se dissolveram que nem fumaça no ar. Deveria ter guardado só pra mim as minhas leituras, minhas observações e tudo mais que aprendi, que pra muita gente não passa de cultura inútil.
 
Só agora compreendo que as pessoas tinham razão e espero que me perdoem todo o tempo em que nadei contra a maré. Ainda bem que o cansaço me fez parar e me render à sabedoria do mundo. A voz do povo – dizem – é a voz de Deus. E Deus é um velhinho parrudo, cabeludo e barbudo que nem Hermeto Pascoal.
 
Já ouvi dizer que Adão era a reencarnação de um sujeito que viveu não sei quanto tempo antes dele. E ele pode ter sido, antes, uma mulher, um jacaré, um macaco ou mesmo um ser de outro planeta. E eu achando que a Bíblia tinha razão, que Adão foi criado por Deus como o primeiro ser humano do planeta. Quanta ingenuidade... De igual modo, a mulher a quem ele deu o nome de Eva depois de saírem do jardim do Éden, também era um ser que viveu antes: mulher, homem, anta, mamute, zebra, aranha, ameba ou mesmo um etê...
Adão e sua mulher foram expulsos do paraíso por terem comido maçã, e todo mundo sabe que comer maçã era, naquele tempo, o maior dos pecados e o mais hediondo crime que eles poderiam ter cometido... Não, as Escrituras Sagradas não dizem que o fruto proibido era a maçã... E daí? Foi alguém de mente altamente privilegiada que disse, e isso é tudo que importa...
Outro iluminado afirmou que eles foram banidos do paraíso porque copularam. Que a relação sexual era o tal fruto proibido. E muita gente acredita. Não sei por que motivo eu nunca acreditei. Mas se foi um sábio que disse, é possível que seja verdade...
 
Não vou mais argumentar com quem afirma que a virgem Maria permaneceu virgem para sempre, nunca teve relação sexual com seu legítimo esposo após o nascimento do Messias... Apesar de as Escrituras Sagradas registrarem que ele não a tocou ATÉ QUE nascesse o seu PRIMOGÊNITO. E que após isso ele a recebeu como esposa. Aqueles mencionados como IRMÃOS do seu PRIMEIRO filho eram apenas primos.
 
Enfim, desisto, deponho as armas. O mundo venceu. Tudo que o mundo diz é verdade. A igreja católica apostólica romana é a verdade plena, como afirmou Sobral Pinto (1893-1991).
O apóstolo Pedro, apesar de casado, foi o primeiro papa. Cultuar estátuas, quadros ou qualquer outro tipo de obra de arte que reproduza imagem de ser humano ou não humano que habite o céu ou a terra não representa uma transgressão à lei do Criador.
Existe, sim, uma coisa chamada reencarnação. Cada pessoa que nasce é outra que já viveu, e isso sempre foi assim, apesar da enorme diferença numérica que há entre a população atual e a de quatro ou cinco mil anos atrás. Certamente, há uma explicação científica para o fato de a população estar aumentando mais e mais. Claro que há uma convincente resposta para quem perguntar de onde vêm tantos espíritos. Já ouvi um sábio dizer que é de outro planeta. Faz sentido... 

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Doar sangue

Fiz minha primeira doação em fevereiro de 1974. 19 anos, 59 quilos. Magro que dava dó... Meu paletó listrado era de uma listra só... Doação obrigatória. Parte da bateria de exames médicos para a Polícia Militar. Porque eu tava desempregado, e entrar para a PM parecia uma boa opção.
Doei. Doeu. À beça.
Ao final, tive queda de pressão, e os enfermeiros se borraram de medo de eu morrer lá. Me cercaram de cuidados, me deram aqueles biscoitinhos "Selva de Pedra" e Ki-Suco.
Só voltei a doar em 1987, para o pai de uma grande amiga, no Hospital dos Servidores do Estado. Rio de Janeiro. Pressão caiu de novo. Apaguei que nem uma vela. Só que dessa vez foi durante a doação. E não completei os 500 ml, parei nos 300.
Depois disso, passei a participar de campanhas de doação pra pessoas que iam ser operadas. Continuei morrendo de medo de agulha. Mas não parei. 
Teve uma vez que o fenôneno voltou a acontecer após a doação. No Hospital Cardoso Fontes, Jacarepaguá. O sem-noção levantou da cadeira e foi a 200 por hora para a copa do banco de sangue... Apaguei e... PÁH! Caí que nem uma jaca, bati com a cabeça na quina da porta. Me cataram do chão e me colocaram em uma maca...
Depois dessa, era pra desistir, concorda? Que nada! Desistir, vírgula! Peguei o macete. Era só me levantar em câmera lenta e imitar o Rubinho Barrichelo.
E agora vou te contar... Não, não muda de canal agora não... Só mais uma... Por favor! Valeu!
Eu tava morando em Vitória. Tinha que doar para o pai de uma colega do Ministério da Fazenda. Fui lá, né? No hospital. Mas a pressão já tava baixa. A beldade do banco de sangue me reprovou... Aí, sabe o que o doido fez? Trapaceou! Voltei no dia seguinte. E antes de chegar ao hospital, engoli um bocadinho de sal... ARRRGH! Horrível... Mas funcionou...
Tenho medo até hoje. 
Teve alguns anos que fiz três ou quatro doações. Voluntárias mesmo, nada de campanha. 
Tive que parar... Idade... Cheguei aos 60. É que nem nas escolinhas de futebol: não pode ter "gato"...
Mas não me peça pra explicar por que doei até não poder mais.
Nunca fui bonzinho e nunca achei que isso contava ponto pra ir pro céu. Sei que não conta.
Mas então, por quê? Sei não... Devo ser doido...
Sabemos que é um ato de amor, de bravura, de coragem, de fé...
Logo eu...! Nunca tive tanto amor asim pelas criaturas, nem bravura, nem coragem, nem essa fé toda...
Pois é... Fé... Um bocadinho assim, talvez...
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Decottignies

quinta-feira, 20 de julho de 2023

Sobre cigarras e cigarrinhas

Tem cara e formato de grilo. Mas é mesmo uma cigarrinha. É o seu nome: cigarrinha. Macho? Fêmea? Não sei... Deve ser fêmea, não deve ser um cigarrinho...

Lembrei o que li e ouvi de conhecedores do assunto sobre as cigarras, as grandes. Passam dezessete anos debaixo da terra. Depois saem e "cantam" até não poderem mais...

Preciso pesquisar mais se quiser saber como fazem pra continuar a espécie e transmitir o legado... Ovos, larvas? Não sei...

Dá samba, dá o que pensar...

A cigarrinha não é uma cigarra pequena. Mesmo adulta, ainda será uma cigarrinha.

Agora eu tenho que me lembrar. Quando vir uma cigarra miudinha, não vou dizer que é uma cigarrinha... Quando eu aprender sobre o sexo delas, terei que usar o epiceno: macho e fêmea. Porque uma cigarra macho não é um cigarro, e uma cigarrinha macho também não é um cigarrinho... Difícil isso, mas é assim. Não há o que eu possa fazer, a menos que queira brincar... 🤔😁 E eu tô achando que vou brincar... 😁😁😁

Dá o que pensar... Aparências... Natureza... A gente olha pra um inseto e não sabe dele o nome, o sexo, a sua importância no equilíbrio ecológico... 

A gente olha pra uma pessoa e cria rótulos mentais por causa do seu tamanho, da sua aparência e de outros aspectos exteriores...

Mas Deus olha pra nós e vê exatamente o que somos... Seres por ele criados para o louvor da sua glória...

Eu sei... Há mais, muito mais a dizer... Deixo pra você, por conta de você... Porque, mesmo sem se achar capaz, você pode fazer melhor, muito melhor do que eu...

Deus nos abençoe, nos guarde. E tenha misericórdia de nós...

Decottignies

quinta-feira, 13 de julho de 2023

Oquei


– oi tio
– Oi, Maycon!
– tio vc ta em casa
– Estou, Maycon. E você?
– eu tbm tio queria te pergunta uma coiza
– Pode perguntar. O que é?
– pq vc nao gosta de escreve ok
– Porque eu prefiro escrever como se pronuncia: oquei.
– mais tio iso ta errado vc tenque escreve direito pq sinao as peçoa vao te critica
– Relaxa, Maycon. Quando as pessoas querem criticar, elas criticam, não importando o conteúdo ou a qualidade do texto ou da fala.
– sei la sabe tio eu mim preoculpo com vc
– Agradeço imensamente, Maycon, mas não precisa se preocupar comigo, oquei?
– ta bom tio eu so quero ajuda vc
– Você já me ajuda muito orando por mim, Maycon. Isso vale muito mais.
– obg tio abs
– De nada, Maycon. Abraços pra você também.

sábado, 29 de abril de 2023

Crônica do paraíso

       Escarafunchando seus alfarrábios, Léo Nove deparou com sua primeira Bíblia e, dentro dela, encontrou o último bilhete que lhe enviara Esther – paixão de toda sua juventude –, dizendo-se farta de esperar dele uma iniciativa, qualquer que fosse.
Após amassar o bilhete, escrito em pa­pel de pão, resolveu quedar-se num canto qualquer daquele cafofo e se pôs a ler, nas Sagradas Escrituras, o capítulo 3 de Gêne­sis. Esgotado que andava, logo deixou-se abraçar pelo Morfeu e, como sempre, aca­bou embarcando na sua máquina do tempo e dos sonhos, indo parar lá no Éden. O que se lê adiante, portanto, não é o fiel relato bíblico, pero fruto da tresloucada viagem de Antônio Leonardo Petronov de León, vulgo Léo Nove, ao Paraíso.
Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha ventilador de teto. Não tinha garagem, varanda, quarto, sala, cozinha, banheiro, nada disso. Tubos e conexões Tigre, nem pensar...!
Mas morava ali um casal que vivia fe­liz, apesar de não ter tantas coisas hoje imprescindíveis, como aquele celular­zinho minúsculo quase do tamanho de uma pulga atrás da orelha e que insiste em dizer que não é um celular. A comunicação entre eles era ao vivo, em som alto e claro, con­tavam tudo um para o outro tim-tim por tim-tim e, por isso, não precisavam fazer 21 nem trrrrriiiiinta e um... Mas vamos aos fa­tos.
O varão acordou, espreguiçou, fez aquele “uaaaaahhhh!!!”, esfregou os olhos, levantou, mijou, foi até o rio e tchibum! Nadou à vontade, brincou com a água e, só depois disso, resolveu escovar os dentes. Como não usava toalha, deixou a água escorrer pelo corpo até secar e, só então, destinou alguns minutos a observar e admirar o corpaço da varoa, que ainda dormia feito uma pedra. Aproximou-se devagar e despertou-lhe com aquele beijo no cangote, coisa que ela adorava.
– Bom dia, minha flor!
– Pra você também, gato. Fez café?
– Ainda não, coisa linda. Mas faço rapidinho, se você quiser, sei lá...
– Precisa não, amor. Deixa comigo. Me dá só tipo assim um tempinho, tá?
A varoa não espreguiçou, mas fez “huuummm...!”, ajeitou os cabelos, levan­tou-se e também foi até o rio, onde tomou banho, nadou um pouco e aproveitou para fazer xixi. Saindo, fez também a sua higi­ene bucal e preparou o café da manhã.
Depois do “café” (entre aspas, porque café mesmo não tinha; só pêra, uva, maçã, banana, mamão, melão, suco de laranja, essas coisas...), resolveram conversar um pouco e acabaram, como sempre, rolando pela relva. Quando se cansaram da brinca­deira, correram de mãos dadas pra debaixo da cachoeira. Após o banho, ele se des­pediu, dizendo:
- Assume o comando aí, amor, que eu preciso dar uma saidinha...
- Cê vai aonde?
- Comprar cigarros, tomar uma cerveja e jogar uma peladinha, sei lá...
Tava brincando, claro. Não fumava, não bebia, nem jogava futebol. Riram.
– Cê não tem jeito mesmo. Hmmm, mas eu te adoro... Hmmm (beijo)...
– Tô indo colher maçã, abacaxi e manga... Sei lá... Vou aproveitar pra ver como estão os peixes. Ontem, tinha cada um bitelão assim, ó.
– Tá bom, vai lá.
Já ia ele saindo, quando ela se lembrou de algo que estava querendo.
– Ah,  traz... tipo assim... alguns oplops também.
– De novo esse papo de oplops... Você quer dizer kiwi...
– E você sabe que eu não acerto fa­lar isso. E não gosto desse nomezinho bobo.
– Tudo bem, tudo bem, mas... Peraí! Você nem gosta disso...!
– Poxa, mô... é que eu estou, tipo assim, com desejo... – Colocou a mão no ventre, alisou e fez aquela carinha de dengo. – Traz, vai...!
– Pode deixar, amorzão! Deixa comigo. Fui!
E foi mesmo. Saltitando que nem um cabrito e cantarolando, feliz da vida por não ter sogra, cunhados, parentes, vizinhos, chefe, horário a cumprir, essas coisas. E a mulher tava grávida.
Aproveitando que a varoa ficou só, a serpente aproveitou pra fazer aquela visitinha surpresa. Enroscou-se num dos galhos da árvore proibida e chamou:
– Pssssit! Varo-a!
– Ah, não! De novo não! Que que você quer desta vez?
– Conversar um pouco, poxa!...
– Tá bom... E sobre o que você quer conversar?
– Sobre a maçã, ora...
– Quê que tem a maçã?
– Como, quê que tem? Então não é ela o tal fruto proibido?
– Tá doida! Qual foi a anta que te falou isso?
Mas uma anta que andava por ali protestou.
– Peraí, varoa, não fui eu não! – Apontou para o jerico. – Foi ele, ó.
– Ah, logo vi! Só podia ser tipo assim idéia de jerico! – Protestou a varoa.
– Mas veja bem, se não é a maçã, qual que é, então?
– É esse aí, ó. Dessa árvore onde você tá.
– Menina! Se você não me fala, eu morria sem saber...!
– Aliás, magrela, é melhor descer daí. Porque se você derruba um desses frutos, quem vai pagar o pato é a mamãe aqui. Desce logo, anda!
– Tá legal, tá legal! Tô descendo, ó! - Desceu. Só não desistiu de azucrinar – Mas... veja bem,  querida, eu ainda não en­tendi uma coisa: o que é mesmo que acon­tece a você e seu maridão, se comerem isso?
– Acontece isso, ó, tipo assim: gente morre. Aí, Já era...!
– Du-vi-de-ó-dó! Aposto que ele só disse isso pra meter medo em vocês!
– Ah, fala sério!
– Pois veja bem! Ele sabe que, se vocês comerem, vão ficar que nem ele...
– Tipo assim, como?
– Ora... Assim, veja bem, conhecedo­res do bem e do mal...
– Tá brincando!...
– Tô nada! É sério!
Ao contrário do que a cobra esperava, a varoa desceu o morro, chutou o balde, o pau da barraca, soltou todos os cachorros, botou pra quebrar.
– Escute aqui, sabidona! Eu não admito que você venha aqui na minha casa e chame o meeeeu Criador de mentiroso não, tá? Faz favor! Se vai continuar com isso, é melhor vazar, antes que eu perca as estribeiras. Olha que se eu te pegar, não vai sobrar nem um talisquinho assim de você pra contar história. Deu pra entender ou você quer que eu desenhe?
– Entender, eu entendi. Mas, veja bem, acho que você está é exagerando. Ele também é o criador de tudo quanto é bicho que anda solto por aí, e nenhum deles é desse jeito, tiete que nem você...
– Só que tem uma coisa, ô criatura. Comigo é tipo assim beeem diferente!...
– Humpf...! Não sei por quê!
Aí ela resolveu zoar a serpente e pegou pesado.
– Então, tá bem, dona Serpentilda, você pediu! Não faz muito tempo, eu era só uma costelinha e me sentia insignificante. Aí, o Criador fez o varão dormir tipo assim que nem uma pedra, me pegou, e... tchan-tchan-tchan-tchan! Olha o que ele fez!
Pára! Congela! Merece uma pausa. A pose que ela fez ao dizer isso foi simples­mente antológica. Coisa de cinema. Num rápido movimento, jogou para trás as lon­gas e lindas madeixas; levantou bem os braços e, tocando de leve com as pontas dos dedos, veio descendo desde o alto da cabeça e percorreu as laterais do rosto, o pescoço, os seios, o tronco, até descansar as mãos sobre os quadris, e para fechar com chave de ouro, deu aquela voltinha, jogou a perna direita para a frente e olhou bem para a mo­créia, de cima, assim, ó, com um olhar bem gelado. Imagine a cena...!
– Aaaaaiii, que nojenta! Como é convencida! – disse a criatura, revoltadíssima.
– Sou mesmo, e pronto! E acho bom você não se esquecer disso, tá? – Falou as­sim, porque a cobra já estava mesmo caindo fora, dando uma desculpa muito da esfarra­pada:
– Bem, fofa, o papo tá bom, mas veja bem, eu preciso ver minhas crianças.
A varoa não perdeu tempo:
– Ora, quer saber? Já vai tarde!
O ofídio saiu dali triscando de raiva, reclamando sozinha, falando cobras e la­gartos.
– Essa perua me paga! Ah, se paga...! Isso não vai ficar assim não...
Ora, havia muitos macacos (cada um no seu galho, claro) e outros bichos em volta, assistindo à cena. A macacada, inclu­sive, ria mais do que as hienas. Os papa­gaios é que riram pouco, porque estavam mais interessados em matraquear e comen­tar o fato, maquinando já como iam trans­formar o episódio em mais uma piada.
E pelo menos, temporariamente, a paz voltou a reinar no acampamento...
– Querida, cheguei! – gritou lá da entrada o varão.
– Oi, amor!... Já tava morrendo de saudades...
Abraçaram-se, beijaram-se, e ele per­guntou:
– Alguma novidade?
– Tem sim. O neném mexeu! Olha, deu cada chute...!
– Pois é bom ir se acostumando, que daqui pra frente vai ser assim mesmo...
– Ah, e tem mais uma. Aquela criatura peçonhenta veio aqui de novo me encher a paciência. Só que, desta vez, eu dei tipo assim um chega-pra-lá nela que você preci­sava ver...! Se ela tivesse pernas, colocava aquele rabo horroroso no meio.
– Incrível, né! Ela não desiste... Sei lá...!
– Ai, amor... Vamos nos mudar logo daqui. Não suporto mais isso.
– Na-na-ni-na-não! Quem vai ter que se mudar é ela! Pode deixar, que hoje mesmo eu vou trocar uma idéia com o Cri­ador.
– Hmmmm... Promete?
– Prometo...! E agora, que tal a gente almoçar? Tô com uma fome de leão...!
– Nada disso, meu porquinho. Primeiro você vai é tomar tipo assim um banho! Eca! Tá fedendo que nem um gambá...!
Foram os dois. E desta vez, teve banho de cachoeira e de rio... Pra relaxar, brinca­ram de jogar água um no outro e, só depois, almoçaram. A sesta durou bem umas duas horas e, a seguir, foram namorar...
Algum tempo depois, estava nova­mente a varoa sozinha cuidando da casa. O varão tinha saído, como sempre, dizendo que ia colher frutas e cuidar do jardim. Nesse dia, porém, demorou-se mais do que de costume, o que acabou complicando as coisas para a varoa. É que a serpente, em nova investida, lançou mão de mais uma de suas artimanhas:
– Veja bem, lindona. Se a ordem de não tocar nesse raio desse fruto foi dada para o varão, então que que você tem a ver com isso?
Por essa ela não esperava! Acabou ce­dendo:
– É... Tem sentido... Acho que não vai fazer mal algum.
Foi aí que ela olhou com mais inte­resse para o fruto da árvore, e cresceu-lhe por dentro um desejo incontrolável de pro­var.
Provou. A princípio, achou que ali mesmo cairia dura, esticaria as canelas, mas nada! Continuou vivinha da silva! Só que, a partir de então, afloraram-se os seus medos, e uma estranha sensação invadiu-lhe o inte­rior, ao mesmo tempo em que sentia-se num mato sem cachorro, com aqueles horríveis calafrios por todo o corpo e uma vergonha horrível de estar completamente nua. Não sabia explicar o que estava acontecendo. Soluçou.
– E agora, quem poderá me defender...?
E como não surgiu do nada o Chapolin Colorado, dizendo “Eu!” – a serpente apro­veitou a deixa.
– Fica fria, varoa. Afinal, veja bem, você não mor-reu, né?!
– Sei lá... Acho que botei tudo a per­der...
É... o caldo estava mesmo derramado. Mas a varoa descobriu que era capaz de dissimular toda a sua insegurança. Isso ficou claro para ela quando o varão chegou...
– Oi, amor, cheguei... – gritou, como sempre, lá da entrada.
Uma gazela que passeava por ali achou melhor alertá-lo:
– É melhor se preparar, varão. A varoa tá uma arara!
– Valeu, gazela. Deixa comigo. – Dirigiu-se à esposa. – O que houve, mulher? Cê tá estranha...! – perguntou, intrigado.
– É só isso que tem pra me dizer, senhor Varão? Isso é hora de chegar em casa? Hein? O que estava fazendo até agora, hein? Procurando Nemo?... Como é, não vai dizer nada não? O gato comeu sua língua?
Só quando ela fez um intervalo naquela verborréia desenfreada, ele falou...
– Calma, filha...! Por que esse nervosismo todo...?
– Calma o escambau! E eu não sou sua filha não, tá? Cê sabe que horas são?
– Sei lá... dez pra daqui a pouco...
– Esse cara é palhaaaaço...! – disse a gazela, rindo.
Só que a varoa não achou um pingo de graça.
– Muito engraçadinho... Está é na hora da onça beber água, isso sim!... E tá me olhando desse jeito por quê! Por acaso eu estou tipo assim de verde?
–Pior que tá mermo. Por que não tá de topless? Que negócio é esse de cobrir o busto e abaixo da cintura com folhas de figueira? Tá maluca?
– Tô é farta de andar pelada. Tomei vergonha. Acho, aliás, que você devia fazer o mesmo. – Deu uma voltinha... – O que achou do modelito?
– Ah, sei lá...! Horrível! Prefiro como era antes...
A gazela resolveu comprar o barulho da varoa:
– Liga pra esse despeitado não, lindona. Você está chiquer-rer-rer-rérrima!!!
Sem dar importância à gazela enxerida, o varão retomou a palavra:
– Sabe... Agora que reparei uma coisa... Que é isso que cê tá comendo?
Ela respondeu dando mais uma mordida no tal fruto, e com a boca cheia:
– Icho aqui? Oga, é o tal frutcho proibídio...! Uma delíchia...! Desce redondo e refresca tipo assim até pensamento.
Aí foi que o barraco desabou. A festa ficou do jeito que o diabo gosta, e o varão, doidinho:
– Suspeitei desde o princípio! E quem foi que deu autorização, hein? Hein?
A serpente, até então calada, se meteu na conversa:
– Fica frio, mano véio. Veja bem... Fui eu que dei uma idéia e... – Não conseguiu completar.

– Pois agora, sua víbora, cê vai ver com quantos paus se faz uma canoa...
O varão só não converteu a criatura em purê de cobra, porque foi seguro por um baita dum gorila muito do feio que trouxe com ele a turma do deixa-disso. Enquanto o varão se debatia dizendo “Me larga, seu comedor de bananas!” o restante da bicharada encarregava-se de envenenar a fofoca, querendo ver o circo pegar fogo. Alguns estavam até cantando:
– Poeira... Poeira... Poeira... Levantou poeira...
– Que que tá pegando?
– Por que esse furdunço todo?
– Foi a varoa que deu piti...
– Fala sério! Quer dizer que, finalmente, eles quebraram o pau?
– Com certeza! Tá maior barraco!
– Ih! Que mico!
– O varão deu na cara dela...?
– É ruim, hein! Esse mané não faz mal a um mosquito...!
– Quero nem saber. Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher...!
– Parece que ele pegou ela com a boca na botija...
– Ouvi dizer que vão se divorciar...
– CHEEEEEGA! – Gritou a varoa, a fim de pôr ordem no recinto.
E tudo se acalmou, como ela queria.
– Aê, negão, dá pra me soltar? – pediu o varão, mais calmo.
– Tudo bem, eu solto. Mas vou ficar de olho em você. Acho bom não facilitar.
Prometeu se comportar e dirigiu-se à esposa:
– Poxa, amor! Sei lá... Como você faz um negócio desses? Pedi trocentas vezes pra não ficar de trololó com essa minhocona doida nem aceitar idéia dela...
Sem ter como se justificar, a varoa ironizava, cantando:
– Tô nem aí... Tô nem aí...!
– Pronto! Agora, já era mermo...! – disse o varão.
A serpente, mudando de tática, resolveu atacar de novo:
– Acho que não, chefia. Veja bem: primeiro que, pelo que eu sei, a ordem de não comer do raio do fruto foi dada só pra você...
– É... Em parte... Mas... Sei lá... – A serpente o interrompeu:
– Peraí, que eu ainda não acabei. – Fez uma breve pausa e prosseguiu: – Poxa, companheiro, a varoa tá inocente na parada. E, além disso, veja bem, ela não morreu, como o Criador tinha dito...
– Mesmo assim, sei lá, continuo achando errado contrariar uma ordem dele...
– Mas é muito cara de pau! Então você acha certo deixar a patroa sozinha nessa canoa furada? Cadê a tal de solidariedade? Que espécie de marido é você? Ah, já vi tudo! Fica aí dando uma de bom moço, vestido em pele de cordeiro, mas é maior joão-sem-braço, um tremendo amigo da onça...!
– Peraí, também não é assim não... Sei lá! – Disse, meio desconcertado.
- Então, veja bem, o que que tá faltando, então pra você experimentar do fruto? – perguntou a serpente.
– Isso mesmo, bem! – disse a varoa.– Experimenta!
Não faltava mais nada. A um sinal da serpente, toda a bicharada fez um coro:
– EXPERIMEN-TA! EXPERIMEN-TA! EXPERIMEN-TA!...
– Tá bom, tá bom! – disse, interrompendo a galera. – eu experimento.
Pegou da mão da varoa o fruto e “tchack!”, mordeu. Pronto, degringolou geral! Sentiu, pela primeira vez, vergonha de estar peladaço, fez aquela pose de jogador de futebol na barreira, vestiu a tanga de folhas e caiu num pranto desesperado. Só que já não adiantava chorar pelo leite derramado. Em outras palavras, deu zebra.
A bicharada dispersou. A cobra já estava fumando, a onça foi beber água, a vaca foi pro brejo, e o burro, coitado, morreu pensando. O Criador chegou e passou maior descompostura nos três, isto é, no varão, na varoa e na serpente, que foi condenada a comer pó durante todos os dias de sua existência. Quanto ao casal, teve que vazar do Paraíso...

Silas

Decocional        30/04/2O23